Nelson Rodrigues vê o Colégio Pedro II

Farei, neste post, um apanhado de crônicas de Nelson Rodrigues em que o autor cita o Colégio Pedro II e discorre sore ele e seus alunos. Esta reunião de crônicas foi publicada em um livreto, distribuído aos presentes na edição 2010 da Feijoada dos Ex-Alunos do Colégio Pedro II. Vez ou outra, sublinharei as partes de que gosto mais.

À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS ©

Amigos, a manchete é um dos vícios fatais da nossa época. Se um jornal anunciar o fim do mundo em uma coluna, ninguém vai se assustar. Pelo seguinte: – porque o homem só sabe vibrar em oito colunas. E a catástrofe que não venha no alto da página, aberta de fora a fora, perde todo o impacto. É a obsessão da manchete.

E, no entanto, vejam vocês: – a poesia do jornal está, por vezes, na notícia miúda, no registro pequeno, em tipo liliputiano. Ainda ontem, por exemplo, eu li um simples texto-legenda que é uma preciosidade. Imaginem vocês que o Pedro II ganhou os Jogos da Primavera, a maior olimpíada feminina do mundo! Claro que houve, lá no velho e eterno Colégio, uma euforia brutal.

E o Pedro II resolveu trazer para a rua sua alegria fabulosa. Houve passeata, escarcéu, correrias, o diabo. Amigos, o brasileiro servil teve a reputação de povo triste. E, de fato, o sujeito não dá um passo, aqui, sem esbarrar numa melancolia, sem tropeçar numa depressão. Nas esquinas, nos botecos, há sempre um brasileiro pingando hipocondria. Lembro-me de um turista que perguntava intrigadíssimo: – “Quem é que morreu?”

De fato, temos, por vezes, o ar de quem chora um imaginário defunto. Mas se este povo é triste, há uma imensa, jucunda, deslumbrante exceção: – o aluno do Pedro II. Tenho um amigo meu que vive rosnando: – Nesta terra, até as cadeiras são neuróticas. Ao que eu responderia: – “Menos as cadeiras do Pedro II”. Porque, lá, os móveis também são coniventes no humor dos alunos.

Uma das mágoas que eu tenho na vida é a de não ter sido, na minha infância ou juventude, aluno do Pedro II.  Andei por colégios mais lúgubres do que a casa do Agra. Mas há, em mim, até hoje, a nostalgia de não ter estudado ou fingido que estudava lá. A rigor, não são os professores que me interessam no Pedro II. Nem os seus problemas de ensino. O que me deslumbra no aluno do Pedro II não é o estudante, mas o tipo humano. Ele deve ser um mau aluno (tomara que seja), mas que natureza cálida, que apetite vital, que ferocidade dionisíaca.
Olhem para as nossas ruas. Em cada canto, há alguém conspirando contra a vida. Não o aluno do Pedro II. Há quem diga, e eu concordo, que ele é a única sanidade mental do Brasil. E, realmente, não há por lá os soturnos, os merencórios, os augustos dos anjos. Os outros brasileiros deveriam aprender a rir com os alunos do Pedro II.
Volto ao texto-legenda. Em poucas linhas está descrita a comemoração da vitória. E não se lê, no jornal, uma palavra de simpatia, e pelo contrário: – é evidente a irritação. Quem redigiu a nota está indignado com a euforia total dos estudantes. Mas reparem como o jornal hipocondríaco está sendo bem brasileiro. De fato, nós somos uns ressentidos contra a alegria, e repito: – a alegria ofende e humilha os impotentes do sentimento.
Por fim, o colega chama os meninos de ‘pequenos vândalos’. Não se pode desejar uma incompreensão mais nostálgica. Por que ‘vândalos’? Porque andaram quebrando umas cadeiras e, sobretudo, porque andaram chupando Chicabon sem pagar. Vamos admitir, risonhamente, que é lamentável. Mas nunca houve um 7 de setembro, ou um 14 de junho, sem atropelos inevitáveis. Os apertões cívicos derrubam senhoras, asfixiam menores. E nas procissões há quem bata carteira, ou atropele, ou desmaie. Vamos concluir que os patriotas e os devotos são vândalos?
Numa terra de deprimidos, o alegre devia ser carregado na bandeja como um leitão assado. E devíamos subvencionar o Pedro II para inundar a cidade, diariamente, com a sua alegria total, ululante. E vamos arrancar a máscara de nossa hipocrisia. Pois, no fundo, invejamos amargamente a garotada que lambeu de graça tanto Chicabon.
(Nelson Rodrigues – O Globo, 29/09/63)
MAIS DO QUE ESTIMA ©
Amigos, eu devia escrever, hoje, uma crônica sobre o Pedro II. Tenho por esse colégio mais do que estima. Nós estimamos coisas e pessoas de uma rigorosa mediocridade. Por isso eu disse mais do que estima, e uma admiração gratuita e profunda. Para mim o Pedro II tem um altíssimo valor simbólico: aos meus olhos ele é o Brasil. Seu aluno que anda por aí, fazendo um deslumbrante escarcéu, seu aluno, dizia eu, é o brasileiro.
Mas não farei, hoje, a crônica sobre o fabuloso sol do colégio. Pretendo escrevê-la, com mais vagar, amanhã ou depois. O Pedro II está ardendo nos Jogos da Primavera. Vale a pena uma meditação sobre a qualidade humana dos seus alunos.
(Nelson Rodrigues – Jornal dos Sports, 06/10/63)

A BAGUNÇA GENIAL ©

Amigos, na minha crônica de ontem, disse eu que, hoje ou amanhã, escreveria sobre o aluno do Pedro II. Vamos lá. De vez em quando, eu me pergunto: Como definir o Pedro II? A meu ver, o Pedro II é um estado de alma. Um aluno do Pedro II, mesmo sem uniforme, mesmo sem nada, é inconfundível. Pode ser identificado a olho nu, no meio da multidão. Ele não é parecido com ninguém.

E só uma coisa me admira: é que nossos poetas, os nossos romancistas, os nossos dramaturgos não tenham valorizado e dramatizado ainda um tipo de tanto valor humano e de tanta qualidade lírica. Alguém dirá que ele é excessivo e que, nas suas passeatas, faz escarcéu. Em primeiro lugar, não vejo por que cargas d’águua um jovem, um adolescente, há de comportar-se com a polidez, a cerimônia, a correção de um boneco de museu de cera.

Já me ocorre outra explicação para a abundância, para os arrancos do Pedro II: é o Brasil. Nada temos com o inglês, o sueco, o alemão, o finlandês. Por que o brasileiro há de se envergonhar de ser um bárbaro? Por que o brasileiro há de se envergonhar de ser brasileiro? A grande novidade do Brasil é, se me permitem a expressão, a bagunça generosa, criadora, vital. Ponham ordem aqui e o Brasil será muito menos Brasil.

Quando vejo um aluno do Pedro II tomando carona de bonde, ou fazendo barulho, eu não me irrito; pelo contrário, a minha reação é de pura inveja, de atroz despeito. Esta meninada ululante é uma força da natureza. Ora, ninguém se lembraria de pedir à tempestade um bom comportamento, ou de querer que o tufão da Flórida seja um suspiro, uma aragem. Forças da natureza, disse eu. O aluno do Pedro II chove, troveja, relampeja.

Faço esta meditação a propósito de uma visita que me fizeram, ontem, três alunos do fabuloso colégio. São eles: Paulo Fernando Pedrosa, Vladimir Augusto e Fernando Lemos. Batemos um papo imenso. Não lhes condenei os possíveis excessos, e explico: Deus me negou uma virtude importantíssima para as relações sociais e humanas, que é a hipocrisia. Expliquei-lhes que, embora sem ter estudado lá, eu me sinto um eterno aluno do Pedro II.

Os meus visitantes falaram da intimidade do colégio. Para eles, o diretor Roberto Accioli é um anjo total. Outro: o assistente do diretor, o professor Nélson Zarur. O bom, no Pedro II, é que todos se entendem. Não há abismos de incompreensão que, comumente, separam alunos de diretores e mestres. O chefe de disciplina, Álvaro Chaves, e Uruguai Campos são duas figuras esplêndidas, de larda e cálida humanidade. Há também o Décio Tubis e mais: Antonio Correia, José Pinto, João Rangel, Geraldo Fernandes, Lúcio Pereira Pacheco, Norman Romero e o motorista Luís Celestino.

Mas eu pergunto: qual é o mistério, o charme, e repito: o que é que faz a eternidade do colégio? É que lá, do Roberto Accioli ao motorista Luíz Celestino, todos têm alma de aluno do colégio Pedro II.

(Nelson Rodrigues – Jornal dos Sports, 08/10/63)

O GRANDE SOL DO PEDRO II ©

Amigos, escrevi, há dias, uma crônica que era, ao mesmo tempo, uma confissão. Disse eu que uma das minhas tristezas mais fundas e uma das minhas frustrações mais fatais era não ter sido, nunca, aluno do Pedro II. Não ser aluno do Pedro II, é, para qualquer estudante brasileiro, uma humilhação. Eu disse isso e repito, pelo seguinte: porque o Pedro II é o Brasil.

Qualquer um de seus alunos é inconfundível e não se parece com ninguém, ou por outra: só é parecido com o brasileiro. O sociólogo, ou poeta, ou psicólogo ou turista que queira conhecer este povo deve conviver com os alunos do Pedro II. Só. E tal convivência será mais reveladora do Brasil do que Os Sertões, de Euclides da Cunha, ou os escritos de Gilberto Freire.

Ao confessar a minha frustração eu não imaginei jamais que ia acontecer o impossível. Há dois dias, com efeito, recebi um ofício do Pedro II, assinado pelo professor Roberto Accioli, que é o diretor de lá. Nesse documento estava o milagre: por sugestão do Grêmio e com concordância geral, inclusive do próprio diretor, me era concedido o título de ALUNO HONORÁRIO do Pedro II.

Amigos, sempre digo que não há o imbecil. Ou por outra: há um único. Refiro-me ao sujeito que não acredita em milagres. Ora, o ofício que recebi é, fora de qualquer dúvida, um dos mais autênticos, um dos mais deslavados, um dos mais cínicos milagres de todos os tempos. No momento em que me lamentava de não ter sido aluno do Pedro II, eis que, por uma dessas interferências sobrenaturais, passo a ser o aluno que nunca fui.

É o maravilhoso que, subitamente, irrompe na minha vida e a inunda. Li e reli o ofício. E mal podem imaginar, o Accioli e todos os alunos do fabuloso colégio, que o título dado é, para mim, muito importante do que o Prêmio Nobel. Ao mesmo tempo, verifico que, na minha mocidade, nunca deixei de ser aluno de lá. Como eu já disse e repito, o Pedro II, mais do que um prédio, que uma tradição, que um uniforme, é um estado de alma, e insisto: um estado de tensão dionisíaca. Sem o saber, eu já era, e sempre fui, um aluno do Pedro II. Eu e todos os brasileiros. Somos 75 milhões de alunos do Pedro II.

Quem veste o uniforme do colégio passa a ter tudo o que faz um brasileiro parecer gêmeo de outro brasileiro. O que faltava apenas no meu caso, era a oficialização. Mas eu vos digo: – como ALUNO HONORÁRIO DO PEDRO II, eu já estou me sentindo muito mais brasileiro.

(Nelson Rodrigues – Jornal dos Sports, 11/10/63)

JANTAR DE FORMATURA ©

Amigos, belo dia o de anteontem. A turma do Colégio Pedro II celebrava mais um ano de formatura ou, para ser mais exato, trinta anos de formatura. Um dos convidados foi Gildásio Amado, que na época era diretor do Colégio.

Mas o patético é que fui outro convidado. E por que se, para minha tristeza, jamais fui aluno de lá? Agora a explicação. Desde meus sete anos, admirei o Colégio e admirei os alunos. E os via passando com tremenda euforia. Uma vez desengatando o reboque do bonde. Tudo disso era dionisíaco e empolgava a cidade.

Muito mais tarde, escrevi uma crônica sobre o Pedro II. Lá está o meu encantamento pela história e lenda do educandário. Desculpem. Empreguei, sem querer, a horrenda palavra educandário. Esta crônica está no convite do jantar de formatura. E eu sentei-me à mesa de Gildásio Amado.

Quando lhe fui apresentado, disse-me ele: – “Temos um vínculo – o Fluminense”. Vejam vocês. Como Fluminense, era meu amigo, meu irmão. E ainda havia o Pedro II. Conversei muito com Gildásio e ele referiu um episódio lindo.

O caso é que houve um incidente disciplinar e a professora contou-lhe que tinha chamado o aluno de moleque. Gildásio perguntou-lhe: – “A senhora chamou o aluno de moleque?” Algo no seu tom impressionou a santa senhora. E, então, a outra quis saber: – “O senhor está me censurando?” Gildásio disse toda a verdade: – “Estou censurando a senhora, sim!” Aquela senhora sentiu como se um raio a rachasse em duas metades.”

Aliás, encontrei, naquela festa maravilhosa, vários tricolores. Um cochichou-me: – “O Horta está fazendo falta!” Respondi: – “Também acho!” O que eu quero dizer é o seguinte: – quando queremos definir o brasileiro, como tal, penso no aluno do Pedro II.

E, se um dia, Deus abaixasse para perguntar: – “Diga, quem se parece mais com o brasileiro?” Eu diria: – “Quem se parece mais com o brasileiro é o aluno do Pedro II”. À meia noite, a hora que apavora, a festa chegava ao seu final. Gildásio Amado fez belo discurso. Quase me levantei para pedir: “Fala da professora que chamou o aluno de moleque!” Eu teria mais que dizer. Mas meu espaço acaba aqui.

(Nelson Rodrigues – O Globo, 15/12/78)