Mario Filho, o jornalista, pede cautela após a vitória do Brasil sobre a Espanha no Mario Filho, o estádio

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Não acho que o povo brasileiro está confiante como em 1950. Mas não custa nada alertar, não é mesmo? Algumas passagens dão calafrios. Ah, o trecho foi retirado do final do quinto capítulo do livro O Negro no Futebol Brasileiro, do jornalista Mario Filho. Minha edição é da editora Mauad X, de 2010. Recomendo com toda força e paixão. É um dos livros mais importantes sobre a cultura brasileira e a identidade nacional.

Era uma Nova Era que ia se abrir para o futebol brasileiro. Todos a esperavam: ela tinha data para começar. 16 de julho de 50.

Pareceu até que fora antecipada, na goleada do Brasil contra a Espanha, quando uma multidão de duzentas mil pessoas cantou, de repente, na hora exata, sem aviso prévio, sem um sinal, as “Touradas de Madri”.

Conheci uma espanhola
Natural da Catalunha
Que tocava castanhola
E pegava touro à unha

Era uma quinta-feira, 13 de julho, e comemorou-se com três dias de antecedência o título de campeão do mundo que ninguém ia tirar do Brasil. Durante toda a noite, em todos os bares, em todos os botecos da cidade, o brasileiro bebeu e cantou. Os bares e botecos cheios, gente na calçada sambando.

E cada um se lembrava de um lance. Principalmente o gol de Jair, o terceiro. Os espanhóis recuando enquanto Jair avançava porque só chutava forte com a bola parada. Jair empurrou a bola de leve, parando-a a um passo dele e encheu o pé. Ramalletes fechou os punhos, juntou os braços para receber o impacto. E os braços de Ramalletes se abriram e foram levados para trás. A bola quase furou a rede.

Era o fim da Fúria, como se chamava o escrete espanhol. Para a crônica europeia, aquela fora a maior exibição de futebol que o mundo já vira. Poucos levaram em conta o fato de que o Brasil fizera o primeiro gol aos três minutos de jogo. Que em dez minutos já estava vencendo de três. E que, desinibidos, jogando à vontade, ao som das “Touradas de Madri”, indo para o baile, os brasileiros tinham feito uma partida que não podia servir de base.

O melhor jogo do Brasil, num sentido de verdadeiro futebol, sério, compenetrado, tinha sido o contra a Iugoslávia, quando Zizinho tivera de fazer o mesmo gol duas vezes, para valer. O gol seria o da vitória. O juiz anulou o primeiro, Zizinho repetiu pouco depois o lance, como num bis de teatro, para mostrar que o gol tinha de valer. E valeu.

A vitória contra a Espanha, porém, virou a cabeça do brasileiro. Não do jogador brasileiro: do brasileiro que ficava de fora e que já se sentia campeão do mundo. Ainda mais porque o Uruguai empatara com a Espanha no finzinho do jogo, um jogo perdido, ganhara da Suécia a duras penas.

Enquanto isso o Brasil goleava a Suécia e a Espanha. Que dúvida podia haver? As fábricas de flâmulas trataram de fazer centenas de milhares de flâmulas: “Brasil, campeão do mundo”. Os gabinetes fotográficos reproduziram em milhares de cópias uma pose do escrete brasileiro com letras gravadas em preto: “Brasil, campeão do mundo”.

O Prefeito Mendes de Moraes mandou preparar o Carnaval, o maior Carnaval que já se vira no mundo. Em cima da marquise milhares de sacos de confete para serem despejados, lá de cima, logo que o juiz desse o jogo por terminado.

Preparara-se uma rampa de ferro que, uns cinco minutos antes do jogo acabar, seria colocada através do fosso para dar passagem aos jipes das sociedades carnavalescas que fariam a volta do campo. Contrataram-se bandas de clarins, baterias de Escolas de Samba.

No sábado 15 de julho, à tardinha, os jogadores do escrete brasileiro estavam despreocupados e alegres, relaxados, vendo na quadra da curva de São Januário um treino de vôlei para moças. Foi quando veio a ordem: todos ao salão nobre.

É que tinha chegado tudo quanto era candidato a vereador, a deputado, a senador, para cumprimentar os jogadores que no dia seguinte iam ser campeões do mundo. Flávio Costa podia achar errado: estava, porém, de pernas e braços amarrados, pois era também candidato a vereador. Com a vitória do Brasil a eleição dele era mais do que certa.

Como candidato não podia cercear a liberdade dos outros candidatos. E durante duas horas, de pé, os jogadores do escrete brasileiro ouviram discursos inflamados. Cada candidato queria demonstrar mais confiança no escrete. Assim os jogadores brasileiros recebiam, de cara, o tratamento de campeões do mundo.

Mal se podia respirar no salão nobre do Vasco, aquela massa incalculável de candidatos queimando carbono, sacudindo os braços, gritando. Os jogadores brasileiros cercados, aprisionados em abraços de candidatos.

– Me assine um autógrafo aqui.

Era uma flâmula: “Brasil, campeão do mundo”. Num cartão-postal colorido: “Brasil, campeão do mundo”. Numa fotografia dezoito por vinte e quatro, uma montagem de péssimo gosto, do estádio e do escrete, com letras góticas a nanquim: “Brasil, campeão do mundo”.

Deve ter passado pela cabeça de mais de um jogador brasileiro:

– E se der o azar?

Podia dar o azar, e tudo aquilo que se estava fazendo era justamente o que nenhum clube na véspera de um campeonato se atrevia a fazer: porque podia dar o azar. Porque sempre, de acordo com as estatísticas, dava o azar. Um jogo era um jogo, era um jogo, era um jogo.

E talvez mais de um jogador brasileiro se lembrasse, entre os gritos e os abraços dos candidatos, de que dois meses antes houvera um Brasil e Uruguai, em São Januário, e que o Brasil vencera só de um a zero, num gol quase espírita de Ademir Menezes.

Naquele sábado já um vespertino não aguentara em guardar o furo que na segunda-feira não seria mais furo. Nem numa extra de domingo. E esticou a manchete com vinte e quatro horas de antecedência: “Brasil, campeão do mundo”.

No domingo, às onze horas da manhã, os jogadores brasileiros estavam almoçando, todos procurando não pensar no jogo, uns contando anedota, se todos rissem relaxariam, seria uma beleza, quando tiveram de levantar-se. Eram os candidatos que voltavam. Uns que não tinham vindo na véspera e que não queriam ser passados para trás. E tome discurso. E tome abraço. E tome autógrafo.

Entrando em campo viram que os olhos humanos ainda não tinham contemplado, a maior multidão que já fora a um jogo de futebol, duzentas e vinte mil pessoas que cá de baixo pareciam esfarelar-se.

Era assustadora aquela massa humana que se comprimia no Maracanã. Dependia deles, só deles, que aquelas duzentas e vinte mil pessoas vivessem o dia mais feliz ou mais desgraçado de suas vidas. E não só aquelas duzentas e vinte mil pessoas que tinham conseguido entrar no Maracanã. Não havia um brasileiro lá fora, no Rio, em São Paulo, em Minas, no Rio Grande, na Bahia, em Pernambuco, em qualquer estado ou território do Brasil, que não estivesse ao pé de um rádio, para ver, também, com os ouvidos, o Brasil ser campeão do mundo.

Só na hora em que os dois escretes ficaram formados em campo, um de cada lado, o velhinho alegre Mr. Reader olhando o cronômetro para dar início ao jogo, é que veio o medo. Todo torcedor, por mais confiança que tenha no seu time, conhece bem esse instante de suprema humildade. Então sabe, com certeza plena, que um jogo é um jogo é um jogo. Que tudo pode acontecer num jogo. Que será o que Deus quiser.

Daí o silêncio súbito que pesou, como chumbo, sobre o Maracanã. O mistério ia desvendar-se para o bem ou para o mal.

Toda a força do futebol está nesse encontro frente a frente, um olhando nos olhos do outro, do homem com o destino. Só que o homem só vê o destino depois que ele descerra o último véu. Por isso é que o torcedor se encolhe e emudece no momento em que o destino vai principiar a desencadear-se, sem que qualquer força humana possa detê-lo.